O Caminho Secular da Vezeira
Seis horas da manhã, a mochila está preparada para mais um dia de aventura, o ponto de encontro é no barracão do gado, à nossa espera estará o Nuno Afonso, um dos últimos vezeireiros da nossa aldeia, e o maior produtor de gado da mesma. Saímos de casa apressados com a sensação que algo fica para trás em esquecimento, mas o tempo urge, e pelas seis e meia já o telemóvel toca como se fosse mais um alarme para acordar, é o Nuno, certificando-se que estaremos presentes à hora da partida.
A Vezeira é interessante até na partida, os animais não se juntam na aldeia, juntam-se apenas no primeiro prado, ou curral, e ninguém quer chegar atrasado às horas combinadas, ainda conseguimos lembrar a conversa de vários vezeireiros na sexta feira “Ás Oito em Salgueiro”.
O Nuno Afonso é um jovem que decidiu não partir, não perde o seu tempo com o mundo urbano ao qual pouca ligação tem, ou nenhuma. É dedicado, metódico, e apaixonado pelo gado, todas as semanas em conversas nos explica o que é ter Barrosãs, e as oscilações entre raças de uns anos para os outros entre saídas e entradas de fase dos poucos subsídios que ainda vão caindo por aqui. Percebemos a dureza dos tempos no seu olhar, mas a humildade e amabilidade quando é hora de o acompanharmos mais os seus animais.
Seguimos com o Nuno e com o seu gado no tradicional caminho calcorreado pelos vezeireiros por centenas de primaveras em que o passado se perde em números inatingíveis. Os baldios de Fafião através do seu Conselho Diretivo destinaram os seus barracões fora do perímetro central da aldeia, o que tornou esta viagem muito agradável porque entramos e saímos da aldeia antes de percorrermos os estradões em terra batida que nos levam lá ao Alto, a Salgueiro.
Em conversa com o Nuno percebemos a dificuldade que é ser produtor de gado em terras do Baixo Barroso, e nos nossos pensamentos impera uma qualidade de vida esquecida pela atualidade que reside nas cidades, na decadência das culturas e das tradições onde um fosso se constrói num país a diversas velocidades construído. Quase como se o presente destas gentes não existisse, onde os fundos e as opções se debatem nas capitais populosas.
Saímos da aldeia com a noção que a subida do gado é apenas isso, onde cada família segue em frente bem cedinho pela alvorada, ainda sem o raiar do sol, e depois no primeiro prado lá ele se junta todo e está feito. Um conceito errado, a Vezeira é bem mais do que isso, e rapidamente o percebemos quando temos pés a caminho. O Nuno vai segurando o gado, o Carlitos segue atrás com a sua família, num compasso de ordem, mantendo o gado afastado no seu perímetro, calhou-lhe ficar lá hoje a dormir. Lá bem ao longe, onde a vista atinge os limites outras famílias seguem com os seus animais rumo ao destino, Salgueiro.
Chegamos a Salgueiro e percebermos que na subida o gado se move como um todo, que os pequenos vitelos são lentos, e que realmente para lá chegar às oito horas em ponto é necessário acordar bem cedo. A viagem é em si agradável, o Nuno vai manuseando o gado com afinco para que este não se distraia com os manjares que pintam de cores primaveris o caminho. Falamos de muita coisa relativo à Vezeira neste circuito anual. Há algo que nos chama à atenção no meio de tanta conversa, os prados não são limpos na serra por imposições de quem desgoverna estas áreas de Parque Nacional, o tojo e outros arbustos vão ganhando ano após ano terreno, e o gado deixa de ter alimento, são declinadas dezenas de queimadas controladas que são necessárias a esta terra pelo ICNF a pedido do conselho diretivo de Baldios.
Lá em cima em Salgueiro unem-se os pastores, chegam a cada seu passo os último vezeireiros desta tradição. O senhor Domingos da Laja é o mais antigo, seguido pelo Guilherme, os restantes são todos mais novos, uns na casa dos quarente, outros dos trinta e há ainda alguns na casa dos vinte. O Carlos Curralejo, sapador florestal de profissão fará as honras da casa, será o primeiro pastor a dormir na serra com o gado de todos, como é desenhada a ordem das coisas, foi assim decretado em reunião na semana anterior, que antecede a subida do gado. A partir daqui fica sozinho, ou como é caso, com a sua filha e a sua esposa, enquanto que o restante grupo segue Serra acima, muito há a fazer hoje, quem pensa que vem para um passeio, que se desenganem.
Todos juntos seguimos pelo estradão, nem todos vão a pé, a carrinha do Quim leva a sua família, os mais velhos e o material até onde chega o veículo, hoje há material pesado para levar para a Serra, há que poupar no cabedal, os trabalhos serão desde a limpeza dos trilhos atacados pelos arbustos até à limpeza da cabanas e análise aos portelos e paredes que não permitem a passagem do gado de um lado para o outro. As sacholas acompanham alguns dos vezeireiros. Almerindo Matos, guarda da GNR é um dos vezeireiros, vem substituir o seu irmão, esta prática tem acontecido imenso mesmo com outras famílias, em que se revezam uns aos outros, uns porque têm outros afazeres, outros porque embora tenham animais na vezeira já têm dificuldade em acompanhar estes trabalhos.
A Vezeira é algo familiar, cada família tem o seu gado, mas mesmo na vez da sua guarda, ou dos trabalhos comunitários podem vir elementos em sua substituição ou representação.
O primeiro passo depois de Salgueiro é chegar a Pousada, o caminho é pesado, pelas dezenas de vezes que cruzamos estes caminhos em lazer, imaginamos sempre o que seria de um dia como de hoje, carregados de ferros, enxadas, mochilas apetrechadas, e velocidade no caminho. Ninguém quer ficar para trás, e mesmo os mais velhos nos fazem suar os pensamentos.
O Senhor Guilherme Landeira, também sapador florestal, está na casa dos sessenta anos, esta vida dura da serra já lhe valeu duas operações às pernas, e a dificuldade do peso é hoje visível na sua movimentação. Fafião e a sua serra não são leves, pelo conhecimento que temos das várias, percebemos bem que ser Vezeira aqui neste pedaço de planeta é preciso haver um estofo bem diferente, o terreno é feito de subidas e descidas íngremes, os trilhos e estradões são sempre com enorme inclinação para não falar do clima, que é incerto até ao Verão. Não é fácil a Serra Fafiota.
A chegada a Pousada depois uma boa meia hora de subida é estanque com um pequeno repasto, todos trazem as suas merendas, e dividem, contam-se algumas histórias recentes da Serra, as notícias sobre os lobos, debatem-se velhas e novas histórias da aldeia, e sentimo-nos parte de um filme dos anos trinta. Viver este dia todos os anos é um recuar do tempo, e sentimos em homens como o Guilherme e como o Domingos a sua jovialidade. É quase como uma iguaria ter ambos a contar como faziam isto e aquilo aqui pelo território, como quebravam as regras e como pagavam as devidas compensações da batota à própria autoridade local, a Vezeira.
Pousada é também sinónimo de divisão de grupo e de tarefas. “Ora bem…”, eleva o Senhor Domingos da Laja, percebemos através da sua voz que as tarefas serão agora repartidas, e que a irmandade será provisoriamente desfeita.
O Raúl, um jovem engenheiro da aldeia, presidente do Conselho Diretivo de Baldios vem em representação do sogro, a par do Almerindo, fica com a árdua tarefa de rumar ao extremo do território e reparar um dos portelos. Assim partem apetrechados com o material pesado rumo ao prado de Rocalva, os restantes, seguem o velho trilho secular rumo a Bicos Altos.
De Novos e Velhos, os Trabalhos
Bicos Altos é um dos mais belos prados do Parque Nacional da Peneda-Gerês, a sua posição geográfica abre em trilho para um enorme espaço muralhado pelas montanhas acima dos mil e cem metros de altura. O senhor Joaquim Martins é sobrinho do senhor Domingos da Laja, faz questão de trazer a sua família para a Serra, como é bom costume dos país que ainda amam isto. O Gonçalo e a Letícia acompanham-no quando podem, especialmente em dias como o de hoje, tradicionais por excelência.
Saímos de Bicos altos em direção a uma zona onde existem uns portelos e é necessário criar uma parede para que o gado não passe de um espaço para o outro ignorando os portelos. Portelos são amontoados de pedra construidos na serra para que os animais só os passem quando estão abertos. Uma forma tradicional de manter o gado dentro de perímetros. As obras hoje são montar essa parede, e novamente dividir este grupo. Inicia-se o trabalho forçado, arrancar algum granito, resvalar e montar a barreira.
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Montada a Barreira é hora de nova ordem de Trabalhos, o Joaquim e o Nuno seguirão para a Cabana da Amarela, o Guilherme e o Domingos voltarão a Bicos Altos. Há algo interessante na reunião que antecede a subida da Vezeira, para além da definição do dia, há a definição do trajeto e das cabanas que serão usadas como abrigo para os pastores. Fazer a cama é o termo utilizado pelo retirar das ervas e arbustos que compõem o interior das cabanas onde os pastores de deitam, arrumar a casa. Este ano a da Amarela e Prado Lã necessitam desses cuidados, e Bicos Altos precisa de reparação da estrutura que compõem o rudimentar teto, é preciso arranjar para que não chova lá dentro.
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Seguimos o Joaquim, o Saul e o Nuno na limpeza da Amarela, para infortúnio, a porta encontrasse danificada, para ambos seria mais prático retirar o que lá está à moda antiga, uma pequena queimada, mas as regras rígidas do Parque Nacional não permitem fogo sem autorização, e novamente acabamos à conversa habitual, o fogo requisitado, a parca demora e a autorização declinada constantemente. É notável o abandono das autoridades perante os povos, e a exemplo de Fafião devem-se seguir Pitões das Júnias, Vilar da Veiga e da vizinha Ermida, cujas práticas ancestrais são sempre mal vistas, ignoradas e muitas das vezes negligenciadas. Vivemos nitidamente num pais onde o dinheiro nem para as florestas vão, e mesmo os dinheiros que são feitos cá em cima tomam sempre a direção sul para amontoar os cofres da capital. Não obstante, hoje não há fogo, toca a limpar com a sachola as cabanas.
Nutro lado da Serra os trabalhos seguem com o Raúl e com o Almerindo a limpar a cabana de Prado Lã, bem ali por cima de Bicos Altos, io processo é o mesmo. As frustrações do fogo debatem-se também com a perda dos próprios currais, nas histórias do antigamente havia cabras que limpavam isto tudo, o tojo era morto pela raiz pelos fogos controlados que as populações organizavam pela serra, e os prados ganhavam outra dimensão. Estão a recuar, de tal forma que a Vezeira de 2021 terá que passar pouco tempo em Salgueiro, pouco tempo em Pinhõ, pouco tempo em Bicos Altos, não há pasto sem fogo, só arbustos que os animais rejeitam.
É tempo de voltar, o agradável trilho contorna um portelo e desce sobre Bicos Altos. Por lá voltamos a encontrar a velha guarda, o Senhor Guilherme e o Senhor Domingos reparam a toda a velocidade possível as chapas do telhado da cabana de Bicos Altos. Saúl Martins, um jovem da aldeia, vem substituir o pai e ajudar o tio Joaquim no que é necessário, vai observando e aprendendo as dicas do Senhor Domingos da Laja neste sentir a serra, é hora de juntar as tropas para o repasto antes de se voltar à carga.
Almerindo Matos e Raúl Costa chegam da sua missão, a merenda é estendida, não falta comida, em terras de Barroso não se poupa neste dia, segundo o Sr Domingos da Laja, antigamente era quase uma competição para ver quem trazia a melhor merenda. Entre sorrisos lá nos conta à hora do tacho as histórias da guarda, as aventuras de serra, os novos vão ouvindo estas passagens incríveis de quem já muito percorreu nesta vida.
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No final do repasto, é hora de alguns partirem, mas outros ficam, nós acompanhamos a continuação dos trabalhos de reparação da cabana de Bicos Altos, ouvindo as deliciosas picardias entre as velhas guardas sempre animadas. Há um presságio no ar do final de vida destas tradições, pelos jovens que nos acompanham hoje talvez não seja assim tão linear. Jovens como o Nuno que vivem do gado podem muito bem manter estas tradições acesas, não quer isto dizer que se mantenham as regras, porque sinceramente, e pelo que temos visto, estão já a ser contornadas para que se mantenham alguns dos efetivos. É o peso da evolução e o peso da melhoria da qualidade de vida dado aos filhos que deixaram a aldeia para se deslocarem para as cidades. Ficam muitas questões no ar na hora da despedida deste fantástico dia com a Vezeira. Descemos novamente a Pousada, e depois a Salgueiro onde nos espera o Carlos e o gado, trocam-se despedidas, e desta vez carregamos as tralhas para cima da carrinha do Joaquim, subimos todos e abandonamos a Serra em direção à aldeia.
Este foi o nosso dia com a Vezeira, prática comunitária que esperamos que nunca acabe. Um especial obrigado a todos os que compuseram este grupo, desde o Sr Domingos da Laja e do Sr Guilherme Landeira, ao Joaquim Martins, ao Raúl Costa, ao Almerindo Matos, ao Nuno Afonso por nos ter aturado logo desde manhã, ao Saul Martins e ao Carlos Curralejo.